Pular para o conteúdo principal

O Manifesto

.O Sonhador é o homem que vive muito bem a vida. Para ele, viver muito bem a vida é nada mais nada menos que inventá-la.

. O Sonhador mora na sua Casa Inventada. Não tem endereço permanente, já que toda imaginação vive mudando de lugar.

. Ele mantém um endereço fixo para receber as contas de luz, água e impostos. É onde vai chegar do trabalho, fazer a salada, ajudar na lição dos filhos e na armação das suas pipas e rabiolas; arrumar a biblioteca, as tintas, os pincéis, o chuveiro quando está quebrado; ler o jornal, levar as crianças para a cama e abraçar quem o espera.

. O Sonhador raramente tem tempo de jogar conversa fora. Na sua porta, há sempre uma fila de Sonhem-me esperando ser sonhados. Eles chegam muitos de uma só vez e a porta do Sonhador se ilumina toda com essas cintilâncias.

. O ofício do Sonhador é sonhar. Ele não tem hora para começar nem para terminar; depende da escolha do material para a sonhação: se palavras, tintas, idéias, pedra, pano, barro… Depende de para onde o vento sopra, das marés, da lua, de uma voz que canta na casa vizinha, e principalmente do que é que os sonhos esperam dele.

. Caso seja interpelado pela exclamação (geralmente indignada): “Mas você só pode estar sonhando!”, o Sonhador não deve hesitar em responder: “Com toda certeza, meu senhor”.

. O direito à propriedade não se aplica ao Sonhador. Os sonhos são matéria intangível, além de serem intercomunicantes, estando, por essa razão, impossibilitados de subjugar-se a um dono.

. Cabe ao Sonhador sonhar por si mesmo. E pelas pessoas à sua volta que carecem de matéria onírica.

. A matéria onírica do Sonhador pode estar nas coisas desdenhadas pela maioria das pessoas: uma gota de chuva, um prego enferrujado, uma tesoura desafiada, agulha sem ponta, chave que se perdeu da fechadura, garrafa vazia encostada no poste, buraco de fechadura de casa sem inquilino, relógio sem ponteiro, pneu furado, raio de sol,cabo de guarda-chuva, garatuja de menino, caco de espelho…

. Quando um Sonhador se depara com um muro, costuma apalpá-lo, milímetro por milímetro, enquanto vai se perguntando por que é que os homens se aprimoram em se afastar uns dos outros de maneira tão dura. Que desperdício de pedra e de tinta! Então salta o muro.

. O Sonhador que se pergunta, à maneira zen, se é, ele próprio, um homem sonhando ser uma borboleta ou uma borboleta sonhando ser um homem, está a salvo das dúvidas cotidianas.

.O Sonhador não busca, ele foge de suas idealizações e das alheias.
Portanto, ele se contenta com encontrar o que se apresenta em seu caminho.

. Todo Sonhador dorme pouco, pois os sonhos sonhados no sono não são matéria propícia para seu trabalho artístico. Prefere os que batem à porta, e vive pronto para atendê-los bem desperto, em puro devaneio.

. Há Sonhadores que trabalham em correios, em barcos, em aviões, em construção de casas, em escritórios, nas caixas de supermercados, em bilheteria de teatro, em chapelarias, em culinária, em chefia, em reforma de roupa, em escolas, em pedágio, em bibliotecas, em pedalar bicicleta, em pentear o vento… (Até hoje nunca se ouviu falar de um Sonhador que trabalhasse para a guerra.)

. Os Sonhadores se reconhecem uns aos outros por uma inevitável atração do olhar e pela vontade de se convidar para sentar num banco de jardim.

Outra forma de reconhecimento é um dos Sonhadores enfiar a mão no bolso, tirar de lá um nada (o nada é matéria invisível indispensável a todo sonhador). Então ambos passam a se alegrar juntos pelo achado. Muitas vezes chegam a pular e a gritar de entusiasmo. Os não- sonhadores observam e torcem o nariz, apertando o passo.

. Todo homem que tem vazio o Lugar de Sonhar é porque esqueceu de carregar até o futuro a Criança que foi um dia.

. O Sonhador costuma ser mais pentimental do que sentimental. É que os pentimentos são camadas transparentes, pintadas umas sobre as outras nas dobras na memória, e trazem maior desafio do que os sentimentos, pela ambigüidade que despertam. Sem nitidez, só se deixam vislumbrar. E o Sonhador é o homem, por excelência, atraído por mistérios e ambivalências.

. O Sonhador não vive de recordações (elas, quando se lembram dele é que pedem para visitá-lo). Prefere lembrar-se do futuro.

. Vai de coração aberto ao encontro dos acontecimentos vários. Porém não tem como admitir a competitividade e outros ruídos que insistem em sufocar a vida dos sonhos.

. Todo Sonhador carrega no bolso, ao invés de fósforo ou isqueiro, um acendedor de vulcões.

. A sonhação do verdadeiro Sonhador parece ser incompatível com a ilusão, embora as ilusões estejam na mesa dele, junto das outras matérias com que compõe seu trabalho. As ilusões, muito coloridas de desejos, podem atrapalhar e até impedir o trabalho de sonhação. Por isso, o Sonhador prefere ocupar-se delas somente nas horas vagas.

. Quando se depara com uma flor, um floco de neve, de algodão- doce, uma semente, um nascer ou pôr-do-sol, uma criança, uma estrela-cadente, o Sonhador se ajoelha, o que costuma causar espanto nos transeuntes.

. A Mãe Sonhadora sonha por seu bebê enquanto ele não tem meios de realizar seu devaneio sozinho. Ou por estar ocupado em compor seu corpinho dentro da barriga, ou, depois que nasceu, por estar muito envolvido no trabalho de mamar, arrotar, defecar, regurgitar, urinar, abraçar, choramingar, dormir, acordar, espantar-se, escutar, tocar a mãe que o está sonhando. Súbito, de uma hora para outra, ele se vê Sonhador de seus sonhos. A mãe, então, vai em busca dos dela.

. Toda criança é um Sonhador de carteirinha. Mas, por sua vulnerabilidade, é passível de ser desviada dos seus sonhos por adultos inexperientes na matéria.

. Quando um Sonhador soluça, é porque tem cardumes deSonhem-mes engasgados na garganta, querendo se tornar poema, pintura, desenho, história, partitura, dança, mímica, palhaçada, escultura, sonata, ciranda.

. Os Sonhem-me, quando não atendidos logo, podem manifestar-se via espirro, tosse, tiques, coceiras, insônia, raiva-não-se-sabe-de-quê… É aconselhável que o Sonhador logo os transforme. Do contrário estará arriscado a morrer de tédio.




autor desconhecido

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poema Anjos de uma asa só

Um lenda,um acalento. . .  Não sei se é verdade. . . e não me importo com isso.  Não precisa ser. . . .  Foi há muito tempo atrás. . . depois do mundo ser criado e da vida completá-lo.  Num dia, numa tarde de céu azul e calor ameno. Um encontro entre Deus e um  de seus incontáveis anjos. Acredita?  Deus estava sentado, calado. Sob a sombra de um pé de jabuticaba. Lentamente  sem pecado, Deus erguia suas mãos então colhia uma ou outra fruta. Saboreava  sua criação negra e adocicada.Fechava os olhos e pensava. Permitia-se um  sorriso piedoso.Mantinha seu olhar complacente. Foi então que das nuvens um  de seus muitos arcanjos desceu e veio em sua direção.  Já ouviu a voz de um anjo?  É como o canto de mil baleias.  É como o pranto de todas as crianças do mundo.  É como o sussurro da brisa.  Ele tinha asas lindas. . . brancas, imaculadas. Ajoelhou-se aos pés de Deus e  falou:  ? Senhor. . . visitei sua criação como pediu. Fui a todos os cantos.  Estive no sul, no norte. No leste

A LENDA DO PARDAL (FRONTEIRA)

DIZEM QUE O PARDAL NÃO É DAQUI,QUE FOI ASSIS BRASIL QUEM TEVE A PÉSSIMA IDÉIA DE TRAZER ESTE BICHO EXCOMUNGADO DAS EUROPAS.NÃO PRESTA PARA NADA,INCOMODA UMA BARBARIDADE E AINDA CORRE COM O TICO-TICO E O CANARINHO-DA-TERRA DE TUDO QUANTO É CANTO. É UM BICHO ANTIPÁTICO,QUE NÃO CAMINHA:PARA ANDAR,TEM QUE DAR UNS PULINHOS,COM OS DOIS PÉS JUNTOS,COMO SE ESTIVESSE MANEADO. E ESTÁ MESMO.FOI CASTIGO DE DEUS. QUANDO NOSSO SENHOR ESTAVA FAZENDO OS BICHOS PARA SOLTAR NA TERRA,PERGUNTAVA O QUE CADA UM IA FAZER.E DISSE A POMBA: - EU VOU SER MANSA E TRANQUILA,O SÍMBOLO DA PAZ. - EU VOU CANTAR PARA A ALEGRIA DOS GAÚCHOS. - DISSE A CALHANDRA.E ASSIM POR DIANTE. QUANDO CHEGOU A VEZ DO PARDAL,QUE ERA RABUGENTO E ESTAVA BRABO POR SER DOS ÚLTIMOS NA FILA,ELE SE SAIU COM QUATRO PEDRAS NA MÃO: - EU?POIS EU VOU DAR COICE NO MUNDO E ACABAR COM TODA ESTA PORCARIA,QUE ESTÁ TUDO MUITO MAL FEITO! - AH,VAI? - DISSE NOSSO SENHOR.POIS ENTÃO EU VOU TE MANEAR,PRA QUE TU NÃO DÊS UM COICE NO MUNDO QUE EU FIZ... É POR IS

Mulher Gaúcha Antonio Augusto Fagundes gentileza de Paulo Roberto Vargas

Os velhos clarins de guerra desempoeirando as gargantas quero-querearam no pago. E o patrão coronelado, reuniu em torno parentes, posteiros, peões e agregados. Chegara um próprio do povo trazendo urgente recado que se ia pelear de novo e o coronel, satisfeito, dizia, fazendo graça: "vamos ver, moçada guapa, quem honra a estirpe farrapa e atropela numa carga por um trago de cachaça...Os velhos clarins de guerra desempoeirando as gargantas Um filho saiu tenente, o mais velho - capitão, um tio ficou de major. (o pobre que passa o pior, a oficial não chega, não: o capataz foi sargento, um sota ficou de cabo e a peonada, e os posteiros, ficaram soldados rasos pra pelear de pé no chão...) Carneou-se um munício farto - vindo de estâncias vizinhas - houve rações de farinha, queijo, salame e bolacha, se santinguando em cachaça a sede dos borrachões. E a não ser saudade e mágoa nada ficou pra trás a garganta dos peçuelos misturava pesadelos sanguessugando, voraz, cartuchos e caramelo