Pular para o conteúdo principal

Meu aluno, meu espelho


  Meu aluno, meu espelho Gosto de coisas que brilham, pois carregam mistérios, prendem a atenção, acalmam e ao mesmo tempo despertam. Algo mágico que reluz ao olhar, que nunca vê o fim, reflete. Então, muitas vezes me pego conversando em frente ou com o espelho.
   Tanto é o prazer, que revejo rapidamente momentos vividos, bem ou malsucedidos. As imagens são entrecortadas por sons e vozes. Encontro perguntas e respostas e me vejo.
   Há muito sou professora de alunos que, embora sejam colocados em situações de desvantagem, são os responsáveis pelo resgate de momentos de verdade. Fizeram-me reconhecer como criadora de significados, sentir a relevância da interlocução para que esse significado seja construído e as relações harmoniosas garantam a sua compreensão. Percebem-se a si mesmos e retomam várias informações que foram acumuladas ao longo da vida, uma história de vida.
  Recordo uma experiência com duas pessoas cujo propósito era ler. Durante nossa convivência, presenciei em seus rostos o largo sorriso, aquele que franze a cara toda, no qual os olhos, apesar de espremidos, brilham. Em que a boca se abre num eco gostoso. Presenciei em seus rostos o choro carregado de emoção, que franze a testa, que vem do fundo, numa respiração ofegante impedindo a finalização da palavra.
  Quando conheci “Ouro”, ele estava concluindo o Ensino Médio. Não sabia sequer segurar corretamente o lápis, mal podia discorrer sobre a folha. Ele era duro para escrever, duro para andar e duro para falar. Um vulto identificado pelas pessoas como esquisito. Sempre cabisbaixo, passava pelos corredores como se fosse um boneco de cordas. Não fitava o olhar, e se falava desandava em muitos assuntos ao mesmo tempo — sem coesão, sem coerência, com erros de linguagem, trocas. Percebi que se tratava de um desabafo por ficar tanto tempo imóvel, dormindo sobre a mochila. Chegou a mim sem vontades.
   “Prata” ia à escola com interesse voltado para a merenda, comia três pratos “disco voador”. Era a atração da comunidade escolar. Nas maçãs do seu rosto formavam-se profundos sulcos, olhos estatelados e fundos, ausência de contato, dando a ideia de olhar através de. Suas mãos sujas entregavam a função que exercia. Sempre era encontrado nos arredores da escola recolhendo materiais recicláveis ou ajudando a limpar as barracas no fim de feira. Certo dia alguém o convidou a ser aluno. Passava o tempo preenchendo uma  olha com pauzinhos e bolinhas. Quando chegou a mim, dizia –“Craro que sei escrever”, e mostrava, I O I O. Admitia não saber ler.
   Na verdade não nomeava, não descrevia paisagens ou contava histórias, sequer sequenciava-as. A fala era de difícil compreensão – lembra das maçãs do rosto? Assim como Ouro, não lhe deram oportunidade, na idade certa, de se expressar, dialogar, se movimentar; apenas ouvir.
   Uma das professoras de Prata me procurou, sugerindo trocar Prata por dois outros metais, que além de mais em conta, renderiam mais. Diante dessa oferta me tornei surda, cega, imóvel. Encorajada, aumentei os contatos com Prata.
  Depois de muitas retomadas, trabalhei com áreas relacionadas, novas estratégias, como folhear livros, ler figuras, ler pessoas, muito diálogo, sentir emoções. Vi Prata dar novos significados aos pauzinhos e bolinhas. Vi Ouro chorar ao juntar as letras da palavra AMIGO. Dei-lhe forças para conseguir concluí-la, e quanta foi a emoção minha e dele diante da descoberta. Vi Prata pegar a pasta com seu nome em meio a tantos outros. Fitou-me nos olhos, pegou uma folha e escreveu, LUCIANO, em seguida pronunciou LU CI A NO gaguejando, num tom bem alto completou: “Pensam que sou burro. Olha aqui, este é meu nome”.
  Vi Ouro no corredor da escola cumprimentando um amigo “Aí, beleza?” Com aquele encontro de soquinhos, positivo e aperto de mãos. Virou-se para mim e disse “Te contei que na aula da professora falei sobre gases que vi na oficina do meu tio? Que hoje escrevi meu nome na folha da professora?”
  Para Luciano e para Ouro a jornada continua, são pessoas que brilham.
 
E para todos nós resta saber se já aprendemos a escrever nosso nome — Professor.


Eduarda Maria Normanton Ladeira 53 anos Jundiaí, SP 1o lugar categoria 5

Cuido, logo existo - A Gramática do cuidado
Meu aluno. meu espelho - P.87

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Poema Anjos de uma asa só

Um lenda,um acalento. . .  Não sei se é verdade. . . e não me importo com isso.  Não precisa ser. . . .  Foi há muito tempo atrás. . . depois do mundo ser criado e da vida completá-lo.  Num dia, numa tarde de céu azul e calor ameno. Um encontro entre Deus e um  de seus incontáveis anjos. Acredita?  Deus estava sentado, calado. Sob a sombra de um pé de jabuticaba. Lentamente  sem pecado, Deus erguia suas mãos então colhia uma ou outra fruta. Saboreava  sua criação negra e adocicada.Fechava os olhos e pensava. Permitia-se um  sorriso piedoso.Mantinha seu olhar complacente. Foi então que das nuvens um  de seus muitos arcanjos desceu e veio em sua direção.  Já ouviu a voz de um anjo?  É como o canto de mil baleias.  É como o pranto de todas as crianças do mundo.  É como o sussurro da brisa.  Ele tinha asas lindas. . . brancas, imaculadas. Ajoelhou-se aos pés de Deus e  falou:  ? Senhor. . . visitei sua criação como pediu. Fui a todos os cantos.  Estive no sul, no norte. No leste

A LENDA DO PARDAL (FRONTEIRA)

DIZEM QUE O PARDAL NÃO É DAQUI,QUE FOI ASSIS BRASIL QUEM TEVE A PÉSSIMA IDÉIA DE TRAZER ESTE BICHO EXCOMUNGADO DAS EUROPAS.NÃO PRESTA PARA NADA,INCOMODA UMA BARBARIDADE E AINDA CORRE COM O TICO-TICO E O CANARINHO-DA-TERRA DE TUDO QUANTO É CANTO. É UM BICHO ANTIPÁTICO,QUE NÃO CAMINHA:PARA ANDAR,TEM QUE DAR UNS PULINHOS,COM OS DOIS PÉS JUNTOS,COMO SE ESTIVESSE MANEADO. E ESTÁ MESMO.FOI CASTIGO DE DEUS. QUANDO NOSSO SENHOR ESTAVA FAZENDO OS BICHOS PARA SOLTAR NA TERRA,PERGUNTAVA O QUE CADA UM IA FAZER.E DISSE A POMBA: - EU VOU SER MANSA E TRANQUILA,O SÍMBOLO DA PAZ. - EU VOU CANTAR PARA A ALEGRIA DOS GAÚCHOS. - DISSE A CALHANDRA.E ASSIM POR DIANTE. QUANDO CHEGOU A VEZ DO PARDAL,QUE ERA RABUGENTO E ESTAVA BRABO POR SER DOS ÚLTIMOS NA FILA,ELE SE SAIU COM QUATRO PEDRAS NA MÃO: - EU?POIS EU VOU DAR COICE NO MUNDO E ACABAR COM TODA ESTA PORCARIA,QUE ESTÁ TUDO MUITO MAL FEITO! - AH,VAI? - DISSE NOSSO SENHOR.POIS ENTÃO EU VOU TE MANEAR,PRA QUE TU NÃO DÊS UM COICE NO MUNDO QUE EU FIZ... É POR IS

Mulher Gaúcha Antonio Augusto Fagundes gentileza de Paulo Roberto Vargas

Os velhos clarins de guerra desempoeirando as gargantas quero-querearam no pago. E o patrão coronelado, reuniu em torno parentes, posteiros, peões e agregados. Chegara um próprio do povo trazendo urgente recado que se ia pelear de novo e o coronel, satisfeito, dizia, fazendo graça: "vamos ver, moçada guapa, quem honra a estirpe farrapa e atropela numa carga por um trago de cachaça...Os velhos clarins de guerra desempoeirando as gargantas Um filho saiu tenente, o mais velho - capitão, um tio ficou de major. (o pobre que passa o pior, a oficial não chega, não: o capataz foi sargento, um sota ficou de cabo e a peonada, e os posteiros, ficaram soldados rasos pra pelear de pé no chão...) Carneou-se um munício farto - vindo de estâncias vizinhas - houve rações de farinha, queijo, salame e bolacha, se santinguando em cachaça a sede dos borrachões. E a não ser saudade e mágoa nada ficou pra trás a garganta dos peçuelos misturava pesadelos sanguessugando, voraz, cartuchos e caramelo