Juntou que fiz aniversário e, no mesmo
dia, comecei um curso de corte e costura. Era parte dos desejos antigos e
explicáveis: minha mãe costurava. Cresci em meio às linhas, agulhas, tesouras,
fitas métricas.
Quando eu era pequena, sempre ganhava
cortes de tecido de presente, geralmente das tias. Que viravam, pelas mãos da
minha mãe, vestidos e blusas.
Inventei de perpetuar a tradição e,
aos dezesseis, confeccionei para mim um macacão de popeline lilás, sob suas
pacientes instruções. Foi a única peça que costuramos juntas – insuficiente
para que eu absorvesse seu saber, o bastante para despertar a fome de pano.
Já sem ela, na faculdade, arriscava e
abastecia meu guarda-roupa através do maquinário herdado. O corte e a costura
tomaram ares de adivinhação, tentativa, erro, sorte. Funcionava. Faltava-me,
porém, a técnica materna.
Ninguém mais me dá cortes de tecido.
Acho que é porque nem tenho mais tantas tias. Ou então, porque minha mãe não
pode mais fazer minhas roupas. As coisas todas têm suas razões.
Vasculhei os armários em busca de
retalhos para a primeira aula. Encontrei uma panaiada tão antiga quanto o
desejo de costurar direito. Cortes e retalhos do passado, gentilmente poupados
pelas traças.
Foram todos comigo para a aula. Dentre
eles, um, velhíssimo, intacto em sua abstrata estampa de cores, ainda tão
cheias de vida. Presente de quem, afinal? Para mim ou para minha irmã, que
também costumava ganhar os seus? Como surgira no acervo têxtil da família, e
como resistira a tantas mudanças de endereço? Eu bem que já tentara várias
vezes, fazer algo dele. Sua personalidade, no entanto, sempre trouxera dúvidas
sobre o que poderia vir a ser – blusa? Saia? Echarpe? Talvez nem ele soubesse
direito o que queria ser. Cogitei, há algum tempo, usá-lo para outro fim –
pensando na hipótese dele, de fato, não ter nascido para vestir ninguém. Era
tecido arrogante, eu duvidava que fosse se dar bem com outros panos num mesmo
traje. Como um animal de estimação ciumento, que não autoriza seu dono a ter
mais ninguém. Deu nisso: ele sempre retornou ao fundo do armário, que é para
onde vão as coisas da categoria “depois-se-vê”.
Professora bateu os olhos nele e vi
ali certa surpresa. “É seda javanesa, não se faz mais dessas!”. Explicado
estava, ele não era um tecido qualquer e sabia disso. E não era ele, era “ela”.
Naquela hora, no turbilhão sereno das lembranças, vi as tias falando
“javanesa”. Jamais havia associado: javanesa é gentílica de Java. Java fica na
Indonésia. A gente vive falando coisas sem prestar atenção às origens, aos
significados. Por que a camiseta é regata? E a gola, olímpica? A calça, Capri?
Só sei que a ancestral seda, num processo tardio, em breve sairá de seu casulo
reverso. (Antes mesmo de eu tentar ler “O homem que sabia javanês”, aquele, do
Lima Barreto.)
Corte é rompimento, morte. Costura,
união. Corte e costura, de tão antagônicos, são complementares. Um não vive sem
o outro, eles se precisam para que o feitio da vida se dê.
Por isso vou estudá-los. Para, além de
ser autora da minha própria moda, aprender a viver com os dois. E também para
mostrar que não perdi o fio da trama, tampouco abri mão dos sonhos já
alinhavados. Será meu presente de Dia das Mães em longo prazo. Entregue à Dona
Angelina com beijo e abraço apertado, embrulhado em papel-saudade.
Silmara Franco
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